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Sona, património imaterial: uma abordagem extensionista
Sona, intangible heritage: an extensionist approach
Sona, patrimonio inmaterial: un enfoque extensionista
Jorge Dias Veloso
1
Escola Superior Pedagógica da Lunda-Norte
, Angola
jdveloso@yahoo.com.br
Resumo
Sona (plural de lusona), termo que serve para designar a escrita em geral (letras, figuras e
desenhos), são a combinação de pontos e traços feitos na areia. Trata-se de uma cultura dos
Cokwe e de povos relacionados como os Luchazi e Ngangela que vivem no leste de
Angola e em zonas vizinhas, na Zâmbia e na República Democrática do Congo. Os sona
são uma forma de manifestação cultural com grande valor para a Matemática Pura,
Aplicada e para Educação Matemática como consequência do rigor com que essas escritas
são feitas. O seu conhecimento tem passado de geração em geração pela via oral, o que tem
contribuído para a redução significativa dos conhecedores dessa arte. O Departamento de
Matemática da Escola superior Pedagógica da Lunda-Norte tem trabalhado com os seus
estudantes no sentido de levar ao conhecimento da sociedade o grande valor dessa arte,
tem trabalhado também no sentido de enriquecer a inventariação existente dos sona. Essas
actividades de extensão universitária que envolvem estudantes do primeiro, segundo e
terceiro anos do curso de Ensino de Matemática têm passado por aulas expositivas,
realização de palestras, realização de oficinas, realização de cursos de curta duração,
prestação de serviço à comunidade e entrevistas sobre os sona em escolas do Ensino
Secundário. O assunto sona passou a constar da agenda pública da comunidade que
reconhece a sua associação à Matemática. Para alunos do ensino secundário conceitos
matemáticos associados aos sona saíram do abstracto para o concreto através da sua
explicitação em aspectos sócio-culturais.
Palavras-chave: Lusona, sona, extensão universitária
Abstract
Sona (plural of lusona), a term used to designate writing in general (letters, figures and
drawings), are the combination of dots and lines made in the sand. It is a culture of the
Cokwe and related peoples like the Luchazi and Ngangela who live in eastern Angola and
in neighboring areas, Zambia and Democratic Republic of Congo. The sona are a form of
cultural expression with great value for Pure, Applied Mathematics and for Mathematics
Education as a result of the rigor with which these writings are made. Its knowledge has
passed from generation to generation orally, which has contributed to the significant
1
Doutor. Decano da Escola Superior Pedagógica da Lunda-Norte.
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reduction in the knowledge of this art. The Mathematics Department of the Higher
Pedagogical School of Lunda-Norte has been working with its students to bring the great
value of this art to the attention of the society, it has also been working to enrich the
existing inventory of the sona. These university extension activities that involve students
from the first, second and third years of the Mathematics Education course have gone
through giving classes, lectures, workshops, short term courses, community service and
interviews about sona in secondary schools. The sona affair became part of the public
agenda of the community that recognizes its association with Mathematics. For secondary
school students, mathematical concepts associated with sona have moved from the abstract
to the concrete through their explicitness in socio-cultural aspects.
Keywords: Lusona, sona, university extension
Resumen
Sona (plural de lusona), un t
rmino utilizado para designar la escritura en general (letras,
figuras y dibujos), son la combinaci
n de puntos y l
neas hechas en la arena. Es una cultura
de los Cokwe y pueblos afines como los Luchazi y Ngangela que viven en el este de
Angola y en las
reas vecinas, Zambia y la Rep
blica Democr
tica del Congo. Los sona
son una forma de expresi
n cultural con gran valor para las Matem
ticas Puras, Aplicadas
y para la Educaci
n Matemática como resultado del rigor con el que se hacen estos
escritos. Su conocimiento ha pasado de generaci
n en generaci
n oralmente, lo que ha
contribuido a la reducci
n significativa en el conocimiento de este arte. El Departamento
de Matem
ticas de la Escuela Superior Pedagógica de Lunda-Norte ha estado trabajando
con sus estudiantes para llevar el gran valor de este arte a la atenci
n de la sociedad,
tambi
n ha estado trabajando para enriquecer el inventario existente del sona. Estas
actividades de extensi
n universitaria que involucran a estudiantes del primer, segundo y
tercer a
o del curso de Enseñanza de las Matem
ticas han pasado por clases, conferencias,
talleres, cursos cortos, servicio comunitario y entrevistas sobre los sona en las escuelas
secundarias. El asunto de sona se convirti
en parte de la agenda p
blica de la comunidad
que reconoce su asociaci
n con las matem
ticas. Para los estudiantes de secundaria, los
conceptos matem
ticos asociados con los sona pasaron de lo abstracto a lo concreto a
trav
s de su claridad en aspectos socioculturales.
Palabras clave: Lusona, sona, extensión universitaria
INTRODUÇÃO
ma consequência visível da globalização é o surgimento do
multiculturalismo como característica marcante da educação actual. A
grande mobilidade de pessoas à escala mundial intensifica as relações
interculturais, propiciando o surgimento de conflitos. A ética, resultante do
autoconhecimento, do conhecimento da própria cultura e do respeito à cultura alheia, é
U
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          
actividades centradas nos sona em ambiente escolar promovem, efectivamente, o
reconhecimento da importância dos aspectos culturais e da tradição local na formação de
uma nova civilização transcultural e transdisciplinar. Não se pretende, com este artigo ou
com as acções de extensão universitária de que resulta, ignorar, substituir ou rejeitar o
conhecimento e comportamento modernos. Pretende-se incorporar-lhes, valorizando-os
ainda mais, valores de humanidade numa lógica de respeito, solidariedade e cooperação.
De uma maneira geral, as acções de extensão universitária, que serviram de base
para este artigo têm como objectivo, por um lado, divulgar conhecimentos sobre os sona
àqueles que tradicionalmente têm acesso aos sona e, por outro lado, divulgar àqueles que,
não tendo tradicionalmente acesso, vão consumindo informações esporádicas sobre o
assunto por via dos meios de comunicação social, por exposições em espaços públicos, em
museus, entre outros. Essa divulgação tem sido feita por via da interacção de um grupo de
estudantes sendo 10 directamente envolvidos e outros indirectamente envolvidos na
actividade de campo do primeiro, segundo e terceiro anos do curso de Licenciatura em
Ensino de Matemática, sob acompanhamento de professores sendo dois a quatro
directamente envolvidos e outros indirectamente envolvidos na actividade.
As actividades de extensão sobre os sona, desenvolvidas na escola, têm como
objectivos: disseminar e divulgar o conhecimento científico matemático relacionado aos
sona nas escolas e na sociedade em geral; tornar explícita para a comunidade a ligação
entre o conhecimento científico matemático e a sua cultura; contribuir para que, na
aprendizagem da matemática, os alunos lidem com situações reais, aprimorando a sua
capacidade de análise sobre aspectos da sua cultura; aprimorar a capacidade de observação
de conceitos matemáticos em elementos culturais; despertar nos académicos e na
comunidade interesse por fenómenos culturais à sua volta, em particular, fenómenos da sua
cultura, reconhecendo, respeitando e valorizando as suas raízes e criar espaços de
interacção entre os académicos e a comunidade, promovendo a transferência de
conhecimento.
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Sona: a geometria inventada pelo povo Cokwe
A literatura sobre extensão universitária em Angola, certamente fruto da sua
incipiente prática, é embrionária. A incipiência é de fácil constatação, se tivermos em conta
a quantidade de acções de extensão universitária praticadas e publicadas em termos de
eventos, apenas uma conferência internacional dedicada à extensão universitária, tendo
resultado na publicação de um inédito livro de actas sobre o assunto em 2018 diante do
número de instituições do ensino superior (IES) em Angola e diante do número de
estudantes matriculados, respectivamente, 79 IES (55 privadas e 24 públicas) e 261.214 no
início do ano lectivo 2019
2
. Esta situação remete-nos a uma revisão de literatura de uma
realidade extensionista mais consolidada, para o caso a brasileira.
Segundo o FORPROEX (Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades
Públicas Brasileiras) (2007), as acções de extensão universitária, quanto às áreas de
conhecimento, classificam-se em (1) Ciências Exactas e da Terra, (2) Ciências Biológicas,
(3) Engenharia/Tecnologia, (4) Ciências da Saúde, (5) Ciências Agrárias, (6) Ciências
Sociais, (7) Ciências Humanas, (8) Linguística, Letras e Artes. Os sona são utilizados
como arte decorativa e como linguagem para transmitir mensagens, por via da
Etnomatemática, também se tem explicitado conceitos matemáticos inerentes aos sona.
Deste modo, quanto à área do conhecimento, os sona têm dupla classificação: Ciências
Exactas e da Terra; Linguística, Letras e Artes.
Quanto às áreas temáticas, classificam-se em (1) Comunicação, (2) Cultura, (3)
Direitos Humanos e Justiça, (4) Educação, (5) Meio Ambiente, (6) Saúde, (7) Tecnologia e
Produção, (8) Trabalho (FORPROEX, 2007). Os sona enquadram-se em duas áreas
temáticas: Cultura e Educação. O enquadramento na primeira é sustentado pelo facto de ser
parte integrante da cultura do povo Cokwe, são um meio pelo qual o povo expressa valores
como a simetria, a monolinearidade, bem como rigorosidade, o que se nota na execução
das escritas. O enquadramento na área temática Educação justifica-se pelo facto de os sona
serem um veículo de transmissão de valores de geração para geração, justifica-se também
2
Dados obtidos do discurso do Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República de Angola na
abertura do ano lectivo 2019 (ANGOP, 2019).
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por ser um veículo de realização da Educação Matemática, um veículo de ensino e de
aplicação de conceitos matemáticos.
O FORPROEX considera 53 linhas de desenvolvimento das acções de extensão,
convindo, para este artigo, destacar a linha 37 Património Cultural, Histórico, Natural e
Imaterial que se refere à:
Preservação, recuperação, promoção e difusão do património artístico, cultural e
histórico (bens culturais móveis e imóveis, obras de arte, arquitetura, espaço
urbano, paisagismo, música, literatura, teatro, dança, artesanato, folclore,
manifestações religiosas populares), natural (natureza, meio ambiente) material e
imaterial (culinária, costumes do povo), mediante formação, organização,
manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, centros culturais,
arquivos e outras organizações culturais, coleções e acervo; restauração de bens
móveis e imóveis de reconhecido valor cultural; proteção e promoção do folclore,
do artesanato, das tradições culturais e dos movimentos religiosos populares;
valorização do patrimônio; memória produção e difusão cultural e artística.
(FORPROEX, 2007, p. 32)
Pela produção científica à volta dos sona, é razoável elevá-los de património
imaterial para património cultural imaterial, tanto nacional como mundial (da
humanidade). É importante notar que, em todas as publicações, os autores reconhecem os
Sona como património imaterial do povo Cokwe do leste de Angola. Fontinha (1983),
antigo conservador do Museu do Dundo, museu situado na Lunda Norte, província
predominantemente habitada pelo povo Cokwe, num trabalho de campo em interacção com
os akwa kuta sona
3
, fez um levantamento exaustivo dos sona nos anos de 1945 a 1955,
resultando na maior colecção com 287 sona relatados.
Paulo Gerdes (2012, 2014a, 2014b), nos volumes I, II e III do livro intitulado
Geometria Sona de Angola
traços em que os traços são feitos tendo os pontos previamente marcados na areia como
referencial, reconhece e explicita o valor matemático dos sona, o valor educacional, faz
estudos comparativos com alguns algoritmos geométricos no Egipto Antigo, com padrões-
de-fita-trançada e outros motivos monolineares na Mesopotâmia Antiga, com alguns
algoritmos geométricos na Índia, com padrões-de-nó dos Celta, com desenhos na areia das
Ilhas Vanuatu, com padrões monolineares no seio de índios norte-americanos.
3
Mestres da arte sona.
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Coleccionador
Período de colecção
Número de sona
relatados
Emil Pearson
Principalmente os anos 1920
69
Hermann Baumann
1930
4
Mário Fontinha
1945 1955
287
E. Hamelberger
Ca. 1947-1950
28
José Redinha
Antes de 1953
8
Eduardo dos Santos
Ca. 19551960
94
Th. Centner
Antes de 1963
13
Gerhard Kubik
1973, 19771979
25
Tabela 1 - Colecções de sona (Gerdes, 2012, p. 28)
Darrah Chavey (2009, 2010a, 2010b, 2013) aborda os sona em quatro artigos
publicados: (1) no primeiro artigo, descreve os sona como curva de espelho, demonstra
como a sua matemática permite calcular o máximo divisor comum, como se relaciona com
grupos eulerianos e com grupos simétricos. O autor utiliza um software da sua concepção,
que permite aos alunos do ensino secundário fazer descobertas experimentais sobre factos
matemáticos relacionados aos sona; (2) no segundo artigo, identifica três características
predominantes dos sona, (a) as linhas separam os pontos uns dos outros, (b) geram um
circuito euleriano monolinear, (c) são simétricos. Ainda nesse artigo, destaca o facto de a
disposição simétrica dos pontos resultar em monolinearidade e simetria do lusona; (3) no
terceiro artigo, o autor utiliza técnicas matemáticas para construir classes de sona que,
acredita, vão ao encontro dos objectivos artísticos do povo Cokwe e, com efeito, considera,
que seriam vistos favoravelmente pelos artistas históricos da cultura Cokwe; (4) no quarto
artigo, o autor procura por curvas monolineares, que se regem pelas restrições do desenho
dos Cokwe e que exibem os 12 grupos de simetria de papel de parede com redes de
translação rectangular. Em particular, procura por famílias de tais curvas que se mantêm
monolineares para rectângulos arbitrariamente grandes. Demonstra que tais famílias
existem em conjuntos de rectângulos , de densidade positiva entre o conjunto de
todos os rectângulos.
Favilli e Maffei (2004), implementando um software que permite, no computador,
desenhar num movimento contínuo um lusona, escolhidas as suas dimensões (ou seja, os
lados do rectângulo), tornam mais evidente a ligação entre os conhecimentos indígena e
científico. O software visa proporcionar aos docentes uma nova ferramenta didáctica a
partir da qual os alunos possam melhor aprender e entender o que representa o máximo
divisor comum (MDC) de dois números naturais. O software Sona permite aos utilizadores
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considerar o MDC como a solução de um problema geométrico: quantos polígonos para
incluir um conjunto de pontos ordenados num rectângulo ? O software Sona foi
utilizado num estudo piloto em algumas escolas italianas.
Demaine, Demaine, Taslakian, & Toussaint (2007) revelam uma ligação entre os
sona e os grafos gaussianos, dando lugar a uma variedade de novos problemas
matemáticos, relacionados aos desenhos na areia. Os autores iluminam e apresentam
muitos novos problemas matemáticos abertos.
Damian et al. (2006) descreve algorítmos que geram desenhos de sona numa
variedade de modelos e restrições, resolvendo algumas das questões colocadas por
Demaine, Demaine, Taslakian, & Toussaint (2007) e colocando rias novas questões. Os
autores focam-se em desenhos nos quais exactamente um ponto por face delimitada (e
sand drawings made by the Tshokwe people in
the West Central Bantu área of Africa are called sona
4
(Damian et al., 2006, p. 1). Para tal,
Damian et al. (2006) definem e utilizam uma classe de sona:
A sona drawing or sona map is a closed curve drawn in the plane such that the
curve does not touch itself without crossing itself, and no more than two pieces of
the curve intersect at the same point. A sona drawing of a point set must
additionally have exactly one point in each bounded face, and zero points in the
outside face. A sona vertex is a point at which the curve self-intersects. A sona
edge is a piece of a curve incident to exactly two sona vertices at its endpoints. A
sona face is an empty region bounded by a cycle of sona edges. Two sona faces are
adjacent if they share one or more sona edges. A curve or sona drawing is
clockwise-turning if it can be drawn continuously with all changes in direction
being locally right turns
5
(Damian et al., 2006, p. 1).
Como se pode ver nos parágrafos anteriores, a produção científica, sustentada nos
sona, existe em quantidade e qualidade considerável. Essa produção constitui uma base
importante para atenuar efeitos negativos esquecimento, perda ou rejeição das raízes de
um povo da dinâmica cultural complexa resultante de encontros de cultura por via da
4
Desenhos na areia, feitos pelo povo Tshokwe na área Bantu da África Central Ocidental, .
5
Um desenho de sona ou um mapa de sona é uma curva fechada, desenhada no plano de tal forma que a curva não se
toque sem se cruzar, e não mais que dois pedaços da curva se cruzam no mesmo ponto. Um desenho de sona de um
conjunto de pontos deve, adicionalmente, ter exactamente um ponto em cada face limitada e zero pontos na face externa.
Um vértice de sona é um ponto no qual a curva se auto-intercepta. Uma aresta de sona é uma parte de uma curva
incidente para exactamente dois vértices de sona em seus pontos finais. Uma face sona é uma região vazia delimitada por
um ciclo de arestas de sona. Duas faces de sona são adjacentes, compartilham-se uma ou mais arestas de sona. Uma curva
ou desenho de sona gira no sentido horário se puder ser desenhada continuamente com todas as mudanças de direção,
sendo localmente à direita.
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colonização, da globalização ou da relação entre diferentes grupos étnicos. A atenuação
pode ser feita dentro da dinâmica escolar, implementando, no Sistema de Educação e
Ensino, a produção científica sobre os sona, contribuindo, assim, para a restauração da
dignidade de um povo, aliás, como bem se pode entender da citação seguinte:
A Etnomatemática encaixa-se nessa reflexão sobre a descolonização e na procura
de reais possibilidades de acesso para o subordinado, para o marginalizado e para
o excluído. A estratégia mais promissora para a educação, nas sociedades que
estão em transição da subordinação para a autonomia, é restaurar a dignidade de
seus indivíduos, reconhecendo e respeitando suas raízes. Reconhecer e respeitar as
raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do outro, mas, num
processo de síntese, reforçar suas próprias raízes. Essa é, no meu pensar, a vertente
mais importante da etnomatemática .
Doutra maneira, pouco estaremos a contribuir para o exercício de uma
multiculturalidade saudável, sem ou com poucos conflitos, num ambiente de intensas
relações interculturais, como é o ambiente escolar. Estaremos a perder uma oportunidade
de tornar o ambiente escolar mais inclusivo e, consequentemente, perder uma oportunidade
de tornar os membros da comunidade escolar mais e melhor envolvidos naquilo que é
expectável, como se pode também compreender das 
O multiculturalismo está se tornando a característica mais marcante da educação
atual. Com a grande mobilidade de pessoas e famílias, as relações interculturais
serão muito intensas. O encontro intercultural gera conflitos que poderão ser
resolvidos a partir de uma ética que resulta do indivíduo conhecer-se e conhecer a
sua cultura e respeitar a cultura do outro. O respeito virá do conhecimento. De
outra maneira, o comportamento revelará arrogância, superioridade e prepotência,
o que resulta, inevitavelmente em confronto e violência   
47).
Dentre as acções de extensão universitária consideradas pelo FORPROEX (2007)
programa, projecto, curso, evento e prestação de serviços destacamos quatro, o
Projecto de Inventariação e Divulgação dos Sona, cursos de curta duração dirigidos a
professores do ensino não universitário, a realização da I Conferência Internacional sobre
Educação Matemática em Angola pela Escola Superior Pedagógica da Lunda-Norte,
Uni
em curso com impacto social muito manifestado no reconhecimento da sua importância; a
segunda acção é realizada através de cursos de curta duração, com cerca de 10 horas,
dirigidos a professores de Matemática, tanto na condição de estudantes universitários como
nas escolas em que trabalham; a terceira e a quarta acção aconteceram nos dias 3 e 4 de
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Julho de 2019, numa ocasião em que se reuniram vários investigadores de instituições de
ensino superior da África do Sul, Angola, Brasil, Cuba, Estados Unidos da América,
Moçambique e Portugal.
Sobre a quarta acção, prestação de serviço, importa acrescentar que, na conferência,
os estudantes fizeram atendimento ao público visitante às exposições, em particular dos
sona, realizadas à margem da conferência. O projecto prevê o enriquecimento do acervo do
museu do Dundo com publicações sobre os sona livros, artigos, papers, ilustrações,
animações audiovisuais, entre outros , bem como a prestação de serviço de estudantes na
apresentação e divulgação do referido acervo aos visitantes do museu, sendo provenientes
da comunidade local, do país e do mundo. Deste modo, pela prestação de serviço e não só,
garantir-se-á a preservação do património imaterial para e pela transmissão de geração para
geração. No final, como resultado do serviço prestado, como trabalho avaliativo, os
estudantes elaborarão e apresentarão um relatório da actividade desenvolvida.
METODOLOGIA
Como parte do projecto, a metodologia consiste na realização de aulas expositivas,
realização de palestras, realização de oficinas, realização de cursos de curta duração,
prestação de serviço à comunidade e entrevistas. As aulas expositivas são dirigidas aos
estudantes universitários, e não só, dos cursos de ciências exactas, na Universidade Lueji
          Universidade, foram
dadas aulas de dois tempos sobre os sona nas turmas do primeiro ao quarto ano dos cursos
de Física e de Matemática e no curso de Química no terceiro e no quarto anos no ano
lectivo 2019 este curso não teve primeiro e segundo anos. Em cada uma das turmas, as
aulas foram dadas no lugar de dois tempos de uma unidade curricular, preferencial e
geralmente, da área da Matemática. Previamente, foi planeado com os diferentes
professores e, nos dias seguintes, as aulas foram dadas. As aulas no Subsistema do Ensino
Secundário na Escola do Magistério do Dundo, Escola do Magistério do Cambulo e no
Complexo Escolar Delegado Eusébio Nelson do Dundo foram antecedidas de contactos
entre as direcções e entre os professores de ambas instituições, Escola Superior Pedagógica
da Lunda-Norte e escola secundária. Nas escolas do Magistério, beneficiaram das aulas
uma turma da 11.ª e uma da 12.ª classe, de cada um dos seus cursos Ensino Primário,
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Ensino da Língua Portuguesa, Ensino de Biologia e Química, Ensino de Matemática e
Física, História e Geografia , no Complexo Escolar, beneficiaram das aulas uma turma
da 11.ª e outra da 12.ª classe, de cada um dos seus cursos Ciências Humanas, Ciências
Físicas e Biológicas, Ciências Económicas e Jurídicas.
As palestras são dirigidas a um público mais alargado, consequentemente com um
nível de tratamento matemático mais simples e inclusivo, dando possibilidade às pessoas
participantes, independentemente do nível de habilitação e da área de formação, de se
informar sobre o assunto e de contribuir para o seu enriquecimento. Assim, do público
mais alargado, fizeram parte estudantes de outros cursos Direito, Economia, Ensino da
Biologia, Ensino Pré-Escolar, Ensino Especial, Ensino Primário, Ensino da Língua
Portuguesa, Ensino da Língua Inglesa, bem como Ensino de Língua Francesa da
tes da comunidade. As duas
palestras realizadas enquadraram-se numa actividade de divulgação dirigida à comunidade
académica, e não só, e no dia 18 de Maio, Dia Internacional dos Museus, dirigida ao
público em geral.
As oficinas e as prestações de serviço foram realizadas no ambiente envolvente às
aulas e às palestras antes, ao longo e depois. Os dez (10) estudantes e os dois a quatro
professores, que acompanhavam a actividade eram divididos em dois grupos, sempre que
possível, com igual número de efectivos. Um grupo trabalhava na aula ou na palestra,
conforme o caso, e o outro trabalhava ao redor, dando explicações sobre os materiais
expostos, traçando e ensinando a traçar alguns sona, fazendo registos de relatos de alguns
participantes com experiência sobre os sona predominantemente vivida no ritual de
circuncisão do povo Cokwe, denominado mukanda , identificando os nomes e os
significados dos sona, entre outras actividades, incluindo recreativas. Ao traçar e ensinar os
participantes a construir sona, os estudantes universitários apoiavam-se mais na
bibliografia consultada, entretanto, os participantes apoiavam-se mais nas suas
experiências, na sua curiosidade e no conhecimento adquirido pela transmissão oral. Deste
modo, trabalhavam em conjunto na construção de alguns sona, explicando o seu
significado e o contexto em que tradicionalmente eram (são) construídos.
Sendo o tempo de aula e de palestra limitados, as entrevistas surgiam no fim,
conduzidas predominantemente pelos grupos de professores e estudantes participantes da
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aula ou da palestra, para suprir a necessidade de se aprofundar questões levantadas ao
longo da aula ou da palestra, eram abertas, individuais ou colectivas, conforme a
necessidade, num ambiente predominantemente informal, dando maior liberdade de
expressão aos interlocutores.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O trabalho de divulgação em aulas permitiu a interacção directa com pouco mais de
1800 estudantes universitários e alunos do ensino secundário. A divulgação em palestras
permitiu a interacção directa com cerca de 500 palestrados. Com estes números e pelo
retorno recebido da comunidade, notámos que o assunto sona foi colocado na agenda
pública da comunidade em que se encontra a Escola Superior Pedagógica da Lunda-Norte.
O assunto deixou de ser parte restrita das agendas de alguns académicos, de funcionários
do museu do Dundo, de alguns conhecedores isolados, e passou a fazer parte do debate
público, onde são considerados elementos novos de interesse, nomeadamente, o facto de os
sona serem muito estudados por académicos ligados à Matemática e à Educação
Matemática a vários níveis, o facto de haver um número considerável de publicações sobre
o assunto e o facto de o número de conhecedores da arte dos sona ser preocupantemente
reduzido.
As aulas, as palestras, as oficinas e as entrevistas evidenciaram aos participantes as
relações existentes entre o conhecimento científico comprovado e os sona. Os sona têm
relação com conceitos matemáticos simples como é o caso do conceito de simetria, que
começa a ser abordado explicitamente na 6.ª classe e com conceitos matemáticos
complexos como é o caso da Teoria dos Grafos, abordada nos cursos superiores de
Matemática. Desse modo, a compreensão da relação dos sona com o conhecimento
científico matemático está ao alcance dos cidadãos com instrução primária. A evidenciação
motiva e estimula a criatividade, pois a forma de ver os sona deixa de ser meramente
cultural e passa a ser também científica com um conjunto de entes matemáticos, que
passam a ser visíveis à comunidade em geral e reconhecidos como presentes nos sona.
Os cidadãos, tanto universitários como não universitários palestrantes e
palestrados passam a estar conscientizados sobre aspectos sócio-culturais de conceitos
matemáticos associados aos sona, o que significativamente amplia os horizontes dos
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estudantes sobre a importância da Matemática e do seu ensino. O exercício de divulgação
dos sona desperta nos cidadãos conceitos matemáticos necessários para valorização de
parte da sua cultura.
Constatámos socialização de conceitos matemáticos. Com a associação de
conceitos matemáticos à execução e à representação dos sona, eles saem da matemática
abstrata para a concreta, saem da matemática pura para a aplicada, a matemática
intermedeia, ou seja, torna-se a via pela qual o indivíduo passa a conceber, compreender e
executar entes da sua cultura. Conceitos matemáticos outrora abstratos e estudados
simplesmente em cumprimento de um currículo ganham relevância social, por via de uma
capacidade de observação aprimorada, passam a estar visíveis e reconhecidos na realidade
em que se insere o aprendente, passam a constar de situações reais à sua volta. Desse
modo, cria-se um potencial contributo a transformações éticas e políticas por via da
partilha deste conhecimento com entidades responsáveis pelo sistema de educação e
ensino.
Um exemplo de situação real utilizada para aprendizagem ou consolidação da
aprendizagem de conceitos matemáticos, durante as acções desenvolvidas, consistiu no
reconhecimento da diferença entre assimetria e simetria (Fig. 1, 2 e 3), bem como na
classificação dos tipos desta por via das transformações isométricas. Com os sona, foi
possível explicar de maneira simples e clara simetrias e as transformações isométricas
translação, rotação e reflexão associadas.
Fig. 1 lusona assimétrico.
Aplicando as transformações
isométricas o lusona não
revela simetrias
Fig. 2 lusona com simetria
rotacional de 90º. Se fizermos
uma rotação de 90º (ou múltipla
de 90º), constataremos que o
lusona obtido será o mesmo.
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No que diz respeito ao registo, à conservação e à transmissão da memória colectiva,
fazemos um contributo na passagem da oralidade à escrita, enriquecendo os conhecimentos
dos cidadãos sobre usos e costumes à volta dos sona, registando os frutos dos espaços de
interacção entre os académicos e a comunidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância cio-cultural e científica dos sona é um facto. O reconhecimento
dessa importância é feito décadas por profissionais de várias áreas matemáticos,
educadores matemáticos, antropólogos, curadores de museus, entre outros. Na Matemática
e na Educação Matemática, a sua aplicabilidade encontra-se no ensino primário, no
secundário e no superior. Assim, pela matemática e pela etnomatemática associadas aos
sona, justifica-se a sua inclusão nos currículos de ensino da matemática. Desse modo,
garantir-se que os aprendentes construam, reconstruam, reconheçam e,
consequentemente, valorizem elementos identitários da sua cultura. Contribuir-separa
prevenir que os aprendentes se esqueçam ou rejeitem as suas raízes, contribuir-separa
que os aprendentes promovam a sua dignidade por via do reconhecimento e do respeito das
suas raízes num ambiente multicultural.
A grande produção científica, pelo mundo, em torno dos sona remete-nos ao
desafio de os analisar de maneira transversal, permitindo-nos, com as valiosas abordagens
existentes, melhor inventariação e classificação deste património imaterial, o que pode ser
feito, também, através de generalizações algorítmicas.
Pelos sona, tem sido possível colocar novas questões na investigação matemática,
tem sido possível fazer-se aplicações ao estudo de papel de parede, tem sido possível fazer
abordagens inovadoras na Educação Matemática. Portanto, têm utilidade na Matemática
Pura, Matemática Aplicada e na Educação Matemática.
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Recebido em 02 de Junho de 2019
Aceite em 11 de Setembro de 2019
Publicado em 20 de Maio de 2020